Tomás Mais, brasiliano de cabeça chata, co-fundador da R.A.U.L. (Red Anarco Utopista Libre), acredita que a União Carnavalesca do Brasil Futebol Clube (Bovespa:BRA69) poderia ser refundada com um modelo pseudoutópico de Democracia Direta. Enquanto isso, planta árvores.

terça-feira, 20 de abril de 2010

O códice da revolução

Por Rosane Pavam

Era o melhor dos tempos, era o pior dos tempos. O suíço Carl Gustav Jung tinha 38 anos em 1913. Psiquiatra, tornara-se discípulo dileto do neurologista austríaco Sigmund Freud. Isto, em sua vida, significava o melhor. O pior, como a Primeira Guerra Mundial, estava por vir. Antes que ela eclodisse, Jung viu o Mar do Norte transformar-se em torrentes de sangue. Mas algo ainda mais forte que esta visão o devastaria.

Um dia, Freud lhe negou um pedido. Jung quisera detalhes sobre a vida particular do mestre porque buscava elementos para interpretar um sonho que ele lhe relatara. Mas o austríaco encheu-se de desconfiança com a ousadia. Ao negar a informação, invocando sua autoridade no relacionamento profissional que já durava seis anos, Freud a perdeu diante de Jung.

O rompimento levou o suíço não aos livros, à bebida ou às drogas, mas aos brinquedos. Desde criança, Jung montara cidades com blocos e simulara terremotos para derrubá-las. Mas brincar de engenheiro mirim com 10 anos de idade era diferente de fazer coisas idênticas adulto, ainda por cima durante os intervalos de sua clínica psiquiátrica. Ninguém, naquele início de século XX, assumiria viver fantasias tão intensamente, a menos que fosse louco. Jung jamais duvidou, por isso, enfrentar um surto psicótico ao recepcionar as falas íntimas nascidas das brincadeiras de encaixe.

De 1914 a 1930, o psiquiatra ouviu vozes e dialogou com elas na casa familiar de Sees-trasse, a rua do lago em Küsnacht, Suíça. Artista plástico de talento, anotou em óleos as suas visões, todas as que ele jamais afastara, em um processo que designou “imaginação ativa”. Seres míticos, serpentes, mandalas e nuvens vermelhas, em representações soberbas, sobrepunham-se à cidade tranquila. As páginas lembravam as de um códice medieval, e Jung usava várias línguas para designar suas visões. O latim, o grego e o alemão vinham mesclados em uma escrita gótica que percorria as páginas como se um monge copista as tivesse produzido.

Jung organizou essas imaginações na edição O Livro Vermelho (Liber Novus). Bastante conhecida por sua família, foi aberta ao público no segundo semestre de 2009. Os estudiosos aguardavam havia muito o livro que definira o caminho de Jung dentro da ciência psicológica. Em 1957, na autobiografia Memórias, Sonhos e Reflexões, compilada por Aniela Jaffé, ele escreveu: “Os anos durante os quais me detive nessas imagens interiores constituíram a época mais importante de minha vida. Neles, todas as coisas essenciais se decidiram. Foi então que tudo teve início e os detalhes posteriores se tornaram apenas complementos e elucidações. Toda a minha atividade posterior consistiu em elaborar o que jorrava do inconsciente naqueles anos e que inicialmente me inundara. Era a matéria-prima para a obra de uma vida inteira”.

No Brasil, o livro chega em meados do ano, pela editora Vozes, que incumbiu Carlos Orth, por oito meses, da tradução do material em alemão. A introdução e as notas em inglês do organizador da obra, o historiador paquistanês Sonu Shamdasani, foram traduzidas por Gustavo Barcellos e Gentil Titton. Walter Boechat acompanhou a tradução e fez a revisão técnica deste livro, a ser impresso em maio na gráfica da editora italiana Mondadori, seguindo as especificações da Norton original. Serão 404 páginas em formato de 29 x 39 cm, capa dura vermelha, autor, título e editora impressos em dourado.

O livro extraordinário estará brevemente entre nós, mas o que nos quererá dizer? Este é o mistério, este, o motivo de todos os estudos e reflexões que fervilham a partir de agora, cinco décadas após a morte do psiquiatra, aos 85 anos, em 1961. A família não queria dar ao conhecimento público esta faceta do pensador que considerava controversa. Temia as polêmicas que sempre seguiram Jung, deixando-o muitas vezes só, e injustamente, naquele limbo habitado por médiuns, espíritas e charlatães. O tempo mudou suas impressões.

Carlos Byington, membro fundador da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, mergulha nesses estudos com o encantamento de junguiano seguro de sua filiação, ciente do preconceito em relação a esse pensador, ainda vigente nos meios intelectuais. Para início de conversa, em sua casa, no bairro paulistano de Moema, Byington afasta de Jung a possibilidade de loucura.

“Muitas pinturas do livro são compostas segundo as representações que antecedem uma crise psicótica, por exemplo, as serpentes devorando o mundo”, afirma o brasileiro. “Muitos dizem que Jung viveu um surto. Outros, que era psicótico. Muitos psicanalistas sustentam que ele rompeu com Freud porque era psicótico. Há opiniões variadas. Com minha experiência de vida e de psiquiatria clínica, digo que Jung nunca foi psicótico.” Byington tem duas edições do Livro Vermelho para mostrar à reportagem, embora somente aquela de 100 dólares, disponível por encomenda na internet, ele permita ser tocada. A outra, uma rara impressão de luxo, deve ser vista a distância, sobre a mesa de vidro.

Para Byington, a solidez do pensamento do intelectual está intacta, ele que morreu lúcido e em idade avançada, pai de cinco filhos. O que Jung fez no livro foi expor imaginações, não alucinações, mas esta diferenciação, os psiquiatras da época não teriam sabido fazer. “Um erudito dentro da cultura alemã, Jung tinha uma capacidade de estudo enorme. Neste livro, ele cruza inúmeras culturas para conceber a teoria do arquétipo”, afirma o analista.

Jung fora um entusiasmado por Freud desde a publicação de A Interpretação dos Sonhos, em 1900. Sua tese para a universidade, de 1902, em torno dos fenômenos ocultos, citava a obra três vezes. O esoterismo era assunto da infância, nascido das vivências mediúnicas de uma prima. “Ele se ligava em parapsicologia, nos fenômenos irracionais que a psique apresenta, e em sua tese dizia serem essas ocorrências psicológicas”, afirma Byington. “Jung ligava a psique à transcendência. Daí para a vivência de Deus o caminho era direto. Essa função arquetípica dentro de nós é a mesma construída pela religião.”

Havia entre ele e Freud aproximações e também discordâncias, nunca trabalhadas pelos dois em análise, que, naquela época, nem sequer existia. Para Jung, por exemplo, ao contrário do que acreditava Freud, os sonhos não são a realização de desejos, mas sim a expressão da totalidade psíquica. Na autobiografia, o suíço escreveu: “Não tinha qualquer motivo para supor que as unilateralidades da consciência se estendessem também aos processos naturais do inconsciente, pelo contrário. A experiência cotidiana me ensinou com que resistência encarniçada o inconsciente se opõe às tendências unilaterais do consciente.”

Jung acreditava que suas fantasias relatadas no livro tinham uma existência própria, que não se vinculavam a suas experiências familiares ou vivências sexuais. Ele também queria a religiosidade e os mitos como expressão natural da psique. Freud, um ateu formado dentro do positivismo, advogava a sexualidade como um dogma “contra a lama ocultista”. Em oposição a isso, no Livro Vermelho, Jung fala de uma força primordial que contraria a erudição, a cultura, o racionalismo da ciência. “O livro traz o encontro dessas duas forças dentro dele”, diz Byington. “Uma, o ‘espírito da época’, associado à ciência positivista, à razão, àquilo que é aceito socialmente. Outra, o ‘espírito das profundezas’, uma força natural, profunda, independente, que está presente no sonho e na imaginação.”

Para apreender as fantasias, Jung partia da representação de uma descida às profundezas. Em uma dessas ocasiões, ao pé de uma grande rocha, viu um homem de barba branca e uma jovem. O idoso lhe contou ser o profeta Elias. A moça, Salomé, era cega. Elias disse que ele e Salomé se ligavam pela eternidade. Entre eles, uma serpente negra se inclinava na direção de Jung.

Em inúmeros relatos míticos, há exemplos desse par. Segundo a tradição gnóstica, Simão, o Mago, peregrinava com uma jovem, Helena, tirada de um bordel. Nos mitos, a serpente é muitas vezes a adversária do herói. Para Jung, ela anunciava o mito do herói. Salomé, cega, sem ver o sentido das coisas, representava o elemento erótico. Elias, o velho sábio, o conhecimento.

De Elias, nasceu uma das figuras centrais deste Livro Vermelho, Filemon, como Jung o denominou. Sua imagem aparecera primeiro em um sonho. Era um velho alado com chifres de touro. Trazia um feixe de quatro chaves, uma das quais estava em sua mão como se fosse abrir uma porta. As asas se assemelhavam às do pássaro martim-pescador. Dois dias depois de pintar essa representação, Jung viu um martim-pescador morto em seu jardim. Em Filemon, o psiquiatra detectou um conhecimento das coisas que se fazem por si mesmas, com vida própria, já que aquele ser não representava o eu. A partir desta descoberta, Jung adentrou na visão do inconsciente coletivo, ampliando a ideia do inconsciente individual, de Freud. O Livro Vermelho, sabe-se agora, é um livro de revoluções.

Artigo Publicado em Carta Capital (http://www.cartacapital.com.br/app/materia.jsp?a=2&a2=10&i=6229)

Nenhum comentário:

Postar um comentário